Acho que o caminho normal de quem começa a pensar sobre sustentabilidade é: criar consciência de problemas da sociedade como a questão do plástico ou da indústria da carne e querer mudar. Fazer mudanças em casa, na sua dieta, para depois descobrir que o que mudaria mesmo seria mudar o sistema e a estrutura que mantém esses problemas em pé, por mais que você recuse um lixo e não coma nada de origem animal. A maior parte das pessoas que vai além entra em crise: e agora? Sigo fazendo ou deixo pra lá já que não muda nada essa pequena ação?
Me peguei pensando muito nisso nos últimos meses, porque parece mesmo que tanto faz, especialmente quando as pessoas começam a apontar as incoerências no que a gente faz. E muito também quando a gente observa o capitalismo cooptando causas e vendendo canudos de inox (e toda sorte de produtos) como a salvação do mundo (não vai, tá?).
Ainda que as mudanças precisem ser estruturais, que todo dia a gente leia alguma notícia devastadora de algum ecocídio ou medida destruidora do governo, eu sigo acreditando na ação individual e queria explicar o porquê e – com um pouco de esperança – que isso ajude você a acreditar também.
O sistema que estamos vivendo cria inúmeras armadilhas de necessidade para o consumo o tempo todo. A estrutura dele se dá de tal forma que estamos o tempo todo querendo algo novo e toda essa relação de compra surte um pequeno efeito de felicidade que, assim que obtemos o novo objeto, acaba. É assim que vivemos trabalhando para acumular riqueza para ter uma porção de coisas. E é muito difícil se desvencilhar disso, como você sabe – e eu também sei bem.
Toda vez que penso no que de fato estou economizando fazendo meu produto de limpeza, meus cosméticos ou meu vinagre, tendo a pensar que é pouco: normalmente tem uma embalagem envolvida também, ainda que menos; ainda precisei de uma cadeia longa e com uma pegada de carbono alta (provavelmente). Mas quando a gente reduz a discussão a o que é menos impactante ou mais sustentável só por números (um pouco inventados, inclusive rs), a gente esquece da humanidade ao redor de tudo que fazemos. E é nisso que tenho pensado muito.
Quando eu faço alguma coisa aqui em casa, eu estou negando e recusando muitas armadilhas de consumo. Eu não ligo mais para marcas de produtos de limpeza, produtos novos e até ter muitos produtos de marcas x em casa. O que eu faço cumpre a função que é limpar e tô satisfeita demais com isso. Eu não tenho vontade nem de comprar produtos naturais de limpeza, porque pra mim não faz sentido.
Toda coisa que faço aqui em casa com as minhas mãos seja cozinhar, seja criar um cosmético natural, seja comprar coisas na loja a granel é um esforço ativo contra essa lógica do consumo. E é nisso que reside a maior importância da ação individual: criar consciência e transformá-la em prática no dia a dia. É buscar uma vida que seja mais livre do sistema de consumo que vivemos.
Diante de um mundo caótico, com previsões assustadoras (mas que podem ser reversíveis e trabalhadas!), eu acredito que algumas coisas são importantes pra gente materializar o que luta. Ainda que o plástico que eu recuse já tenha sido produzido, eu não quero ser portadora desse lixo. Ainda que existam um montão de problemas com cosméticos convencionais mas que eles sigam sendo produzidos, eu não tenho vontade de passá-los mais na minha pele.
Eu sei e você também deve saber que o canudo que você recusa não salva nenhuma tartaruga de forma prática e direta. Achar que isso é o suficiente quando a gente fala do enfrentamento da crise climática é, de fato, um grande problema de consciência – e de não aprofundar o debate. Corremos o perigo de cair no ambientalismo performático que só serve pro nosso ego (e o que não serve, não é mesmo?). Pra isso, se você está nessa encruzilhada, eu posso sugerir algumas coisas:
- Faça as coisas em casa. Receitas, reaproveitar, consertar, tudo que faça você fugir do consumo de sempre.
- Apresente essas alternativas (e os problemas com o que estamos acostumados) a pessoas do seu convívio.
- Seja porta-voz das más notícias para que todo mundo – não só os ambientalistas – estejam cientes dos problemas que enfrentamos.
- Se informe sobre o que acontece no país, no mundo, pense politicamente.
- Toda vez que você achar que chegou na solução “mais sustentável”, pense de novo. Problematize. Analise todo ciclo de vida daquele produto ou daquela solução.
- Use sua voz para mandar mensagem para as marcas, para os políticos, para as autoridades.
- E quando a saída para um problema aparecer como uma simples compra: duvide. Nós não vamos comprar nossa saída pra esse problema não.
Toda vez que vejo meu vinagre de maçã pronto no final de alguns dias fermentando, eu não consigo não pensar que outro mundo é possível. Se eu posso fazer vinagre, pasta de dente, sabonete, sabão pra roupas e uma infinidade de coisas em casa, por que os mercados não são diferentes? Esse sentimento de que podemos viver sem um montão de produtos que nos parecem extremamente necessários é revolucionador. Se eu mesma posso fazer meu desodorante, o que mais eu posso fazer?
(sim, tem o privilégio de ter tempo pra fazer as coisas, mas aqui eu falo sob a perspectiva de não depender de toda indústria e entender que não é de fato a indústria que nos mantém vivos, mas o oposto)
A minha visão sobre essas pequenas ações é de criar um dia mais livre de preocupações, uma rotina que precisa de menos coisas, uma vida cuja felicidade não está depositada nos objetos que podemos ou os que não podemos comprar. E, também, de criar a consciência de que precisamos é de saneamento básico, programa de prevenção a enchentes, proteção aos produtores rurais familiares, mais proteção de áreas naturais.
Eu não acredito que a gente vá se tornar lixo zero, por exemplo, mas se as pessoas criarem uma consciência melhor sobre a questão do lixo para exigir do estado que na sua cidade tenha coleta seletiva eu já acho bem mais impactante como um todo.
Por isso, ainda que a gente veja posts ridicularizando certas práticas para se evitar o lixo (ou consumir menos, ou ser mais sustentável, ou comer menos bichos), eu digo: continue. Sim, existem diversas camadas de privilégios na sociedade e isso implica em diversas questões sobre o que cada um pode e deve fazer e também o que cada um consegue fazer, mas começar de dentro de casa e expandir para sua rua ou comunidade é sempre eficaz.
A ação individual serve pra que a gente enxergue a materialidade no que quer do mundo. Serve pra praticar uma versão de mundo que acreditamos ser a melhor. Serve para criar reflexões sobre nossas rotinas e práticas do dia a dia. Serve pra repercutir em outras pessoas essas reflexões. Não serve para colocar no indivíduo a carga de resolver os problemas dos grandes, mas nos serve como combustível e lembrete de que outros jeitos de viver são possíveis sim.
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Olá Cristal. Obrigada por publicar esse texto, foi muito bom ler e pensar sobre isso, principalmente porque o que faço parece tão pouco, mas ter essa consciência de que não precisamos de tudo isso pra viver é libertador! Um abraço
Excelente visão, Cris! Me identifiquei com muitos pontos defendidos por você, principalmente sobre como a indústria e o capitalismo nos fazem acreditar que precisamos de centenas de itens que, no fim do dia, não precisamos de verdade. E sim: é MUITO difícil escapar dessa teia perigosa! 🙁 Mas sigo tentando praticar, como você disse, “uma versão de mundo que acreditamos ser a melhor”. Sou vegetariana há pouco mais de dois anos e sempre busco produzir a menor quantidade possível de lixo, além de comprar produtos veganos, orgânicos e cruelty free sempre que possível. É difícil, mas de grão em grão de areia se faz um deserto, né? 🙂
Oi! Essa discussão sobre ações individuais e coletivas não conheço bem, mas se pensarmos que o capitalismo atua justamente no individual, é um pouco incoerente pensarmos que ações individuais vão mudar o mundo né? Hehe! Mas achei interessante o teu raciocínio, principalmente a parte de que fazendo diferente inspiramos outras pessoas a fazerem o mesmo. Nisso eu super acredito e tento fazer quando tem gente ao redor interessada em saber. Mas ainda acho que precisa muita caminhada pra atuarmos mais politicamente sobre os assuntos… (que é o que eu acredito que de fato vai mudar alguma coisa).
Porém vim pra comentar se tu já pesquisou sobre mudanças de comportamento e sobre a questão do cidadão vs consumidor. Tem uma vasta literatura científica sobre o primeiro assunto, que tem a ver com o segundo, que tem menos informação, mas também tem. Caso interesse, posso te recomendar alguma coisa. Acho interessantíssimo usarmos o que a ciência tem pra nos oferecer. Lembrei tambem de uma matéria do Nexo que saiu no fim de janeiro sobre crenças e mudança de opinião, o que tem a ver com o primeiro assunto que coloquei. Caso nao tenhas lido, recomendo.
Um abraço e uma vida mais leve, com menos coisas, pra todas nós 🙂
Oi, Clarissa! Eu estudei design e li bastante coisa sobre comportamento na época, mas acho que você pode me mandar essa matéria e o que vai você lembrar, sempre gosto de ler e aprender mais. 🙂 Meu email é cristal@umavidasemlixo.com
Acho que a encruzilhada é justamente essa: como agirmos mais politicamente? E quem tiver a resposta, vai mudar o mundo.
Obrigada pelo texto! De fato, é difícil não se sentir desanimado de vez em quando. Parece pouco o que podemos fazer, mas sua visão me deu outra perspectiva. Vou me lembrar de que com minhas ações estou materializando o que acredito e quero para o mundo. Um beijo.
Amei seu posto Cristal!
Vc é minha inspiração desde 2018!
To em Campanha pelo meio ambiente.
Meu TCC de design foi um Mercado Lixo Zero. Obrigada pelo seu empenho nessa causa tão nobre!
Oi, Cris! Obrigada pelo seu trabalho e protagonismo. É inspirador e me ajudou em momentos de escolha. Adoro as reflexões e provocações que você faz pela profundidade da análise e, ao mesmo tempo, pelas dicas práticas e exemplos de como fazer acontecer. Um grande abraço!
Obrigada, Bárbara! Fiquei muito feliz com seu comentário, mesmo. <3
Sempre lembro de Gandhi: “Seja a mudança q vc quer no mundo”; é por aí mesmo, na mesma frequência do teu texto,
Obrigada por esse texto, Cristal. Eu entendo que uma mudança consistente precisa vir do sistema, mas isso não deve impedir que pratiquemos o que desejamos viver.