Por favor, não transforme o Lixo Zero em outro estilo de vida consumista

Este post foi escrito pela Anne Marie, autora do blog Zero Waste Chef e sua tradução livre para o português e pro Um Ano Sem Lixo foi autorizada pela autora e feita por mim, Cristal Muniz:

Todas as semanas, pelo menos algumas empresas me contatam com uma “oportunidade fantástica de colaborar” e vender seus produtos para eles aqui, produtos que aparentemente nenhum praticante do lixo zero pode viver sem. Eu não posso responder a todas as mensagens que recebo, então eu geralmente ignoro esses contatos – mesmo para produtos e serviços que eu poderia gostar. Mas quando eu leio alguns deles – como um de uma locadora de lixo -, eu me pergunto: você já leu meu blog?

Além das minhas oficinas de culinária, eu não vendo nada aqui. Eu entendo porque blogs publicam links afiliados, anúncios e conteúdo patrocinado. Manter um blog, mesmo em meio período como eu faço, ao tentar pagar as contas, não é fácil! Todo mundo tem que pagar a hipoteca. Mas vender coisas não combina com a minha-gulp-marca (aparentemente eu tenho uma).

Lixo zero não é um estilo de vida consumista. É um estilo de vida para conservar.

Então, como eu defino o lixo zero?

Como qualquer coisa que eu escreva no meu blog, não há regras. Exceto talvez pelo número 1… A Igreja do Lixo Zero é bastante dogmática sobre o número 1…

1. Comprar menos coisas

Isso parece óbvio.

Quando compro coisas, busco primeiro coisas usadas, de segunda mão. Eu tenho pilhas de coisas que você-nunca-diria-que-são-usadas-só-de-olhar, algumas das quais eu encontrei na rua (eu moro no universo alternativo do Vale do Silício, onde as pessoas jogam fora coisas caras constantemente). Quando eu compro coisas novas, compro da melhor qualidade possível que posso pagar. E, se eu precisar usar um item apenas de vez em quando, tento pedir emprestado. Cada um de nós precisa mesmo de suas próprias ferramentas? Seu próprio cortador de grama? Seu próprio carro? Às vezes sim, muitas vezes não (eu ainda tenho um carro, mas espero ficar livre dele depois que ele morrer).

Se você começou recentemente o caminho do lixo zero, você provavelmente quer jogar fora tudo o que você tem de plástico para substituí-lo por itens reutilizáveis ​​feitos de vidro, cerâmica, metal, madeira, fibras naturais e assim por diante. Eu evitaria fazer isso de uma só vez e gastar uma fortuna. Você provavelmente já tem muito do que precisa para um kit lixo zero – os sacos e potes de vidro para fazer compras e os talheres, potes e canecas para quando você sair. Kits caros de lixo zero são, bem, caros (clique aqui para montar um kit de desperdício zero por zero dólares).

Lutar contra as alterações climáticas, a poluição, a escassez de água e outros problemas ambientais requer a rejeição de uma cultura de consumo desequilibrada, e não uma versão mais verde da mesma. Teslas (carros elétricos) são legais. Transporte público bom e cidades que incentivam o uso de bicicleta são ainda melhores.

“Não tenha tanta tralha que você ficaria aliviado se sua casa pegasse fogo” Wendell Berry. Foto: Anne Marie, Zero Waste Chef.

2. Não enviar nada para o aterro

Eu composto restos de comida e gero pouco lixo de um modo geral. Isso não significa que eu encha minha lixeira reciclável com garrafas, latas e potes. Eu não preciso nem compro a maioria dos produtos que vêm em embalagens recicláveis ​​(geralmente de plástico) – junk food, alimentos processados, refrigerantes, produtos consumistas como cápsulas de café, cosméticos cheios de ingredientes nocivos ​​– então tenho pouco para reciclar.

O plástico pode ser reciclado um número limitado de vezes antes que o material seja encaminhado para o aterro. Assim, a reciclagem atrasa a chegada do plástico no aterro, não a impede. É não comprar esse material que faz isso. Com a China não aceitando mais nosso lixo [dos EUA e outros países ricos], estima-se que 111 milhões de toneladas de plástico terão de ser enviados a algum outro lugar até 2030. Não podemos reciclar nossa saída desse problema, as empresas devem se esforçar a deixar de produzir tanto lixo.

3. Desacelerar

Quem veio primeiro? A cultura do “descartável” ou a cultura “para levar”? A primeira faz a última possível. O sucesso da Starbucks depende, em parte, da onipresente xícara descartável que as pessoas pegam a caminho de outro lugar. Que tal ficar no café e saborear sua bebida em um copo de verdade que você leva na sua bolsa? Ou fazer em casa em uma cafeteira francesa? Esses cenários parecem realmente tão horríveis?

As restrições que coloquei felizmente em minha vida – para não criar desperdício – me obrigaram a desacelerar. Eu faço pão devagar, kimchi devagar, cerveja de gengibre devagar, slow food. Essa comida é tão gostosa que não posso viver de outro jeito. Em outros aspectos da minha vida, cortar meu lixo liberou tempo. Eu gasto menos tempo trabalhando para comprar coisas que eu não preciso, menos tempo para comprar coisas e menos tempo para manter as coisas.

4. Se tornar mais auto-suficiente

Para mim, uma das muitas alegrias de eliminar o lixo vem de aprender a fazer mais coisas para mim e depender menos das corporações para satisfazer todas as minhas necessidades e desejos. Se tornar mais autoconfiante não requer que você saia da sociedade, mude para um yurt (uma tendinha), viva fora da cidade, cultive sua própria comida e crie cabras (mas se você fizer isso, posso visitar, por favor?).

Eu faço um pouco de costura, um pouco de tricô e muita comida. Eu gostaria de cultivar minhas próprias frutas e vegetais, mas não o faço. Eu compro meus vegetais no farmers’ market [feira de produtos orgânicos direto do produtor que existe nos EUA]. Eu não posso fazer tudo sozinha, mas faço o que posso e gosto disso. Até mesmo o monge mais auto-suficiente confia nos outros. A mãe de Thoreau lavava sua roupa quando ele morava em Walden Pond.

5. Consertar nossa cultura do descartável

De volta ao número 1… Quando eu compro, compro coisas de qualidade que duram. Quando essas coisas começam a mostrar algum desgaste, eu tento consertar ou pagar alguém para fazê-lo por mim. Deixamos sempre nossas roupas no nosso alfaiate, um pequeno negócio independente local. Sim, eu mesma poderia consertar as roupas, mas prefiro fazer algumas outras tarefas no lugar (veja o número 4). Sapatos estragando? Os sapateiros ainda existem aqui e ali. Eu tive meu par atual de Birkenstocks arrumado uma vez até agora (e sim, é claro que eu uso Birkenstocks… e como granola…). As bibliotecas onde eu moro também hospedam repairs cafés (lugares onde você pode arrumar de tudo) extremamente populares.

Use até esgotar; Vista até desgastar; Contente-se ou faça sem. Foto: Anne Marie do Zero Waste Chef.

6. Viver mais conscientemente

Acho que isso aconteceu naturalmente quando reduzimos nossos resíduos, porque muitos aspectos de nossa economia de consumo dependem do uso e do descarte do plástico – desde escovar os dentes pela manhã até empacotar os lanche dos seus filhos, comprar, bem, qualquer coisa – cortar as coisas requer algum planejamento, uma auto-examinação, um pouco de reflexão. Mas para mim, esse tipo de reflexão traz alegria. Eu não compro e consumo mais coisas sem pensar. Eu penso através das minhas ações e escolhas, ao invés viver o dia no piloto automático.

7. Aproveitando a comunidade

De volta para aquela ideia de “não posso fazer tudo sozinho”, realizamos mais trabalhos em conjunto na comunidade. Você pode sair e mudar para uma comunidade x, ou simplesmente formar um clube de compras com amigos para reduzir o desperdício e as despesas com embalagens, ou participar de um clube de culinária para economizar tempo preparando comida de verdade (aqui tem mais algumas ideias).

Como a distância entre os que têm e os que não têm aumenta – um por cento da população dos EUA controla agora um historicamente grande e potencialmente desestabilizador social: 38% da riqueza da nação – não podemos todos viver em casas próprias, comprar nossos próprios cortadores de grama e carrinhos de mão, pagar pela nossa própria internet e assim por diante. Habitações cooperativas, alojamentos intergeracionais e comunas não são mais apenas para hippies. Eu moro em uma comunidade intencionalmente e eu amo isso.

“Pêssegos crescendo em nossa comunidade”. Foto: Anne Marie do Zero Waste Chef.

Eu duvido que qualquer uma das idéias que eu listei aqui exponha você como o tipo subversivo que você pode ser. Hoje, viver dessa maneira faz de você um rebelde silencioso. Várias décadas atrás, você teria sido considerado normal.

Author: Cristal Muniz

Cristal Muniz decidiu em 2015 que iria parar de produzir lixo e por isso criou o blog Um Ano Sem Lixo. Ao longo desses anos já deu várias palestras em escolas, universidades e eventos contando quais são os principais desafios e o que mudou na sua vida para alcançar o objetivo do lixo zero. Um ano virou uma vida e em julho de 2018 publicou o livro Uma vida sem lixo (Editora Alaúde), o primeiro livro sobre como ter uma vida lixo zero do Brasil.

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  • Que post incrível! Ele resume bem o sentimento de começar a jornada de uma vida sem lixo. Nosso primeiro impulso é pensar que precisamos substituir tudo o que já temos e sair comprando mais coisas, mas a grande verdade é que essa é uma jornada de transformação em que a criatividade, paciência e a perseverância são fundamentais. No modelo de vida consumista de hoje, queremos tudo pra já. E junto com o movimento lixo zero deve nascer também um outro modo de olhar para tudo…

  • Nas primeiras palavras já fiquei sua fã! Obrigada de coração!!!! Também chequei o post "The Church of Zero Waste" e amei, em especial "You will not judge others. My religion strives to be not only plastic-free, but also dogma-free. #liveandletlive". Sensacional sua proposta!

  • Olá Cristal, adoro o conteúdo dos seus posts, sempre acrescentam algo de bom e útil. Tenho um pedido: você poderia fazer os posts em letra maior? Acabo tendo dificuldade p ler e nāo consigo dar zoom. Obrigada

  • Olá Cristal, primeiramente eu queria dizer que seu trabalho é incrível e tenho muita admiração por você e tudo o que vc tá fazendo 🙂 Eu queria saber como você fez a capinha do seu e-book, pq eu venho procurando umas capinhas mais sustentáveis pra aparelhos eletrônicos e eu só acho alguns pra iPhone de bambu, então eu queria saber se vc fez ou não, se sim justifique sua resposta kkkkk, vc poderia passar o passo a passo pra gente? 😉

  • Oi Cristal!
    Eu to pensando em criar meu blog sobre tentar ser lixo zero com base em uma cidade que não fornece tantas alternativas como a onde você vive, e contar o cotidiano de como é difícil achar comida a granel, por exemplo. Moro no interior do Rio Grande do Sul. Tento seguir tuas dicas mas, realmente, aqui é muito difícil 🙁

  • Obrigado por traduzir esse texto e obrigado por apresentar pra gente tantas alternativas, baseadas em ingredientes que temos aqui no Brasil, a produtos que não precisamos comprar!