Uma das perguntas que eu mais recebo é se x coisa é mais sustentável que y. Às vezes a pergunta é sobre um produto no lugar do outro, noutras é um hábito e outras englobam assuntos mais complexos que nem eu sei responder – e muitas vezes não tinha analisado por esse ângulo. Mas queria pegar essa pergunta pra ampliar essa discussão pra gente pensar sobre porque não existem produtos sustentáveis como a gente acredita que eles sejam (ou deveriam ser).
Quando eu penso no movimento lixo zero, o que é mais forte pra mim são os nãos que a gente precisa aprender a dizer pra tudo. Mas, pra muita gente, e talvez pra você, o que vem na cabeça é um copo retrátil, um canudo de metal ou algum objeto específico que virou símbolo do movimento. Na última cartinha que mandei pra minha comunidade do catarse, falei um pouco sobre gatilhos de compra (que é o que acho mais importante de a gente observar) e esse texto virou uma discussão super rica lá no nosso grupo do Telegram sobre, especificamente, esses “produtos sustentáveis” como copos e canudos.
Um trecho do texto:
“Acho interessante que dá pra conectar esse valor do dinheiro (que sim, em certa medida é importante pra garantir a dignidade humana dentro da nossa sociedade) mas que vira um desejo do individualismo. É a lógica neoliberal sendo vendida, exarcebada nas redes de forma que todo mundo fica querendo pra si – mas não divide pros outros. “A percepção do sucesso apenas por mérito, comum entre celebridades, faz com que movimentos coletivos em busca da melhoria de uma vida também coletiva sejam esvaziados, desestabilizados – é cada um por si e o selfie contra todos.””
Em parte isso é ruim, porque muita gente deixa de fazer coisas simples pra reduzir seu lixo e seu impacto porque acham que o movimento está restrito a quem pode comprar certos produtos ou itens. Em outra parte isso é ainda pior porque a maior parte das pessoas acredita que comprar é o que faz de você uma pessoa capaz de participar de um movimento, de uma ação e pedir alguma mudança. Isso limita nossa capacidade ativa – quem tem dinheiro pra demonstrar seu posicionamento através da carteira? – e também nos restringe a meros consumidores, quando somos cidadãos – uma diferença bem importante.
Então, a luta pra reduzir o lixo vira “eu tenho meu canudo e faço minha parte, se todo mundo fizer mudamos o mundo” ao invés de ser “eu tô fazendo minha parte, mas o Estado precisa melhorar a logística da coleta do lixo, precisa criar leis que impeçam certas práticas e incentivem outras e as empresas precisam se corresponsabilizar pelo impacto que geram de maneira mais efetiva”. E eu não tô dizendo que a culpa é sua de, por acaso, agir assim, tá? O sistema capitalista, especialmente dentro da lógica neoliberal, faz tudo virar individual pra que, justamente, o coletivo não se fortaleça.
Mas então os produtos “sustentáveis” são tão ruins quanto os outros?
Não acho que nada, no espaço da sustentabilidade, tem uma resposta simples como sim ou não. Seria bem mais fácil, inclusive pra mim, que tivesse. Mas eu gosto de olhar a big picture.
Vamos pensar então pra que serve um produto como um copo retrátil ou um canudo reutilizável: eles servem quase que exclusivamente para substituírem um produto descartável que usamos no dia a dia e geram um lixo plástico desnecessário e poluente. Existem outras formas de evitar a produção desse lixo, claro, poderia ser apenas usar a sua caneca do trabalho ao invés de comprar um produto novo, mas convenhamos que eles podem ser bem úteis. Na minha experiência pessoal, os copos retráteis são muito úteis porque tô sempre fora de casa em situações de vida sem pandemia, então eles me ajudam a comer e beber sem precisar gerar lixo sem risco de quebrar, sem ocupar muito espaço.
Um dos problemas que eu enxergo desses produtos é que eles se vendem e nós compramos essa ideia como se eles não gerassem impacto nenhum. E aí quando a gente descobre que tem sim impacto, que eles não são recicláveis (como é o caso do copo de silicone) ou que eles podem ser dispensáveis, a gente se sente meio enganado. Entre o impacto de um copo que se vende e entrega conteúdos sobre sustentabilidade pras pessoas e um copo que se vende como objeto de desejo, eu prefiro o primeiro.
Mas os objetos “sustentáveis” como os “kits lixo zero” não viraram objetos de desejo? A gente consome não porque precisa de função sempre, mas também pra fazer parte de um grupo. Então ter um kit lixo zero específico ou um copinho específico faz diferença pra quem quer ou não fazer parte de um projeto. Ainda que a função pudesse ser a mesma se você pegasse um garfo, uma faca e uma colher na gaveta e pusesse num estojinho, mais ou menos como eu fiz lá no começo quando comecei a chamar meus itens de kit lixo zero.
Aqui acho que entra a responsabilidade das marcas que vendem esse tipo de produto na sua comunicação. Se sua ideia é promover responsabilidade com o impacto que geramos e práticas mais sustentáveis, faz sentido comunicar e vender da mesma forma que qualquer outra marca? Faz sentido criar um objeto de desejo que as pessoas querem comprar pela cor, querem “colecionar”, querem ter vários pra escolher um e deixar outros parados? Ou seja, faz sentido uma marca que vende produtos ecológicos incentivar o consumo impulsivo?
E isso me leva a três pontos:
1. Existem produtos que são menos impactantes, que produzem em lógicas mais amigáveis pro planeta Terra, mas:
O impacto das coisas não é só na produção final, tem toda uma cadeia produtiva imensa por trás de cada linha, cada tecido, cada manteiga vegetal. O impacto também é de como e qual quantidade esse produto é produzido. E como usamos esse produto, ou seja, em qual intensidade, em qual lógica, gerando ou não desperdício.
Não adianta trocar escova de dente de plástico pela de bambu ou roupas produzidas em marcas sem cuidado algum por tecidos orgânicos se seguirmos comprando impulsivamente e sem critério algum. E o fim da vida desses produtos também é bastante importante, se eles são recicláveis, se eles duram bastante tempo, se eles são pensados pra isso.
2. O jeito que consumimos as coisas também diz respeito a como as marcas anunciam esses produtos.
Por isso não faz sentido uma marca que usa tecidos de reuso, produz produtos que fazem você gerar menos lixo na sua rotina, seguirem operando em lógicas de marketing extremamente consumistas. Não precisa parar de vender, mas comunicar os pontos positivos do produto, as situações que ele pode ser útil e indicar que talvez você não precise dele já seria mais legal.
E é por isso que eu tenho usado cada vez menos redes sociais como o instagram, porque elas viraram quase que exclusivamente espaços de compra – e de gerar desejos de consumo – não pela só pela presença de todas as marcas, mas pelas escolhas de algoritmo, anúncios e da própria empresa sobre o que ela quer da gente lá “dentro”.
3. Não existem respostas simples pra problemas complexos.
Toda vez que a gente acha que vai resolver alguma coisa complexa como a crise climática com uma compra ou troca, a gente deixa de ter voz numa discussão política e econômica (sim) importante e que não importa quanto você tem no banco não, você faz parte de uma sociedade e você tem voz também. Eu acredito que a ação individual é importante e é uma das etapas da engrenagem complexa sobre mudar o mundo, não acho que seja dispensável, mas nossas ações precisam focar muito menos no que precisamos ou não comprar e mais em para o que precisamos dizer não.
Por isso, a minha resposta segue sendo: depende. Na sua rotina, pra evitar os descartáveis, você consegue resolver com coisas que você já tem em casa como um guardanapo de pano feito de retalhos de tecido, talheres da gaveta e uma caneca de cerâmica que fica na mesa do trabalho? Então não tem porquê comprar um copo ou um canudo, né? Mas se você não tem um trabalho fixo, tá sempre na faculdade e bebe muita água por aí pode ser que sim. É você quem vai responder se você precisa ou não comprar mais uma coisa, entendendo que, ainda que ela reduza seu lixo, ela não é zero impacto.
O mais importante é a gente entender que mesmo os produtos mais sustentáveis também são impactantes em certa medida. Por mais que a gente priorize produtos locais, agroecológicos, orgânicos, naturais, veganos: eles também geram impacto na natureza. Mais importante que ficar tentando discutir se vale ou não a pena produzir alguns produtos como copinhos e canudos que ajudam a gerar menos lixo se usados com responsabilidade, acho que precisamos discutir porque consumimos e porque insistimos que comprar é o caminho pra solução.
Assumir que um produto sustentável não vai ser perfeito é um caminho pra saber que, apesar dos seus impactos, a longo prazo ele pode fazer mais sentido (insira aqui coletor menstrual, sacolas de pano, até copos e canudos se forem muito utilizados).
Acho que vc já falou em outros textos, e valeria talvez fazer uma ponte: talvez um meio complementar para redução de impacto ambiental seja o minimalismo, que recomenda a redução de posses e compras até um nível que seja confortável (e esse nível varia entre pessoas e estilos de vida). 🙂
Olá, acompanho sempre seu e-mail e artigos. Sobretudo, quando você comentou de que os copos de silicone não são recicláveis, acredito que há um equívoco. Entendo, que a marca maior pode não ser, mas há produtos de silicone como copo, garrafa e canudo da Silicup, que são recicláveis sim. Você conhece?
O silicone é um material RECICLAVEL. Mas não há reciclagem dele no Brasil, logo dá basicamente pra dizer sim, que eles não são recicláveis já que NADA será reciclado aqui.
Adoro seu blog, acompanho praticamente desde o início. A discussão neste caso volta sempre para o mesmo ponto: a mudança de atitude interna, e não fazer isso pra inglês ver, seguindo um modismo. Doar todas as bolsas e sapatos de couro e sair comprando tudo de couro sintético ou tecido, por exemplo. Por que não continuar usando aquela bolsa de couro e aquele sapato até que acabem, e só então comprar outro? A idéia básica é parar de consumir excessivamente. Examinar o que já se tem, mantendo aquilo que efetivamente usamos, mas me parece que o princípio da coisa não foi bem compreendido ainda.