Reciclagem é uma farsa?

Foto por Jilbert Ebrahimi via Unsplash

Eu sei que esse título é meio chamador de polêmica, mas a intenção desse post é discutir as expectativas que a gente coloca na reciclagem e como, entendendo melhor os problemas que existem sobre isso, podemos ser mais assertivos pro futuro – e pro combate da crise climática como um todo.

No último encontro do Clube do Livro da nossa comunidade do catarse, o tema foi reciclagem – e ao invés de um livro a gente viu o episódio sobre reciclagem da série Desserviço ao Consumidor do Netflix. Foi uma discussão muito legal e, pra além disso, a gente tinha selecionado vários vídeos, podcasts e textos pra ler em conjunto com a série e discutir se a reciclagem é tudo isso que pintam ela de ser.

Um pouco de histórico

Pra começar eu queria pontuar algumas coisas interessantes da série e também relembrar com você o que significa reciclar – ainda que a gente use tanto esse termo que pareça besta. A reciclagem surgiu nos EUA como uma resposta ao ativismo dos anos 60 (da época dos hippies) logo após os primeiros descartáveis começarem a serem incorporados em embalagens de produtos. As pessoas se incomodarem com a quantidade de lixo que estava sendo gerada. Muita gente jogava lixo no chão, pela janela do carro, deixava o lixo ali no parque, então as cidades começaram a aparecer mais sujas.

As primeiras campanhas de reciclagem e destinação correta do lixo foram criadas pelas empresas que justamente produziam o lixo: agora existia uma forma correta de destinar essas embalagens que iria reaproveitar o material, então todo mundo poderia ficar tranquilo (risos nervosos). E foi isso que aconteceu mesmo, o pessoal incorporou e abraçou a separação de lixo, as embalagens agora tinham códigos de tipos de materiais com aquele ♻️ com números e todo mundo entendeu que, tendo esse código, aquele material seria reciclado. Mas a verdade era que apenas os números 1 e 2 tinham tecnologia e eram de fato reaproveitados.

Além disso, ninguém explicou direito como era o processo da reciclagem e, por isso até hoje, a gente entende ele como um processo muito melhor, mais limpo e eficaz do que ele de fato é. A reciclagem é um processo industrial, pra começo de conversa. Não é artesanato nem reaproveitar uma camiseta pra fazer pano de chão. Reciclar significa transformar fisicamente (quebrando, desmembrando, desfibrando, triturando) ou quimicamente (derretendo, dissolvendo) embalagens ou produtos para que eles possam virar novamente matéria-prima que servirá para criar um material igual ou parecido.

Um pouco como funciona a reciclagem de acordo com alguns materiais

A reciclagem varia MUITO de material para material. No caso do vidro, por exemplo, você pode fazer vidro novo com 100% de cacos de vidro, sem precisar adicionar nada de matéria-prima virgem. Além disso, ele pode ser reciclado infinitamente: você pode quebrar, derreter e moldar pra sempre os mesmos cacos de vidro, com uma perda de só cerca de 10% que é basicamente de água que evapora no calor na hora de derreter.

O alumínio é bem parecido: também pode ser infinitamente reciclado, também reduz muito o impacto ambiental (cerda de 95% menos emissões de gases com o reciclado do que com o feito de matéria-prima virgem) e elimina a necessidade de extrair bauxita do meio ambiente – que é pelo processo da mineração, logo, extremamente poluente.

Já o papel, por exemplo, não tem um aproveitamento assim tão eterno, ainda que a reciclagem seja um processo bem legal de aproveitamento de aparas e papel ou papelão usados. Eles são picados, desfibrados e se transformam em uma pasta que vai ser usada pra fazer papel novamente. (1) Mas normalmente se usa um percentual de matéria-prima virgem junto, porque as fibras e a celulose da pasta de papel reciclado não ficam tão perfeitas pra serem usadas sozinhas.

Foto por Jon Moore via Unsplash

Mas o plástico é uma questão bem diferente. Existem dezenas de tipos de plástico hoje em dia, é só você olhar ao seu redor: tem plástico mole e fininho como os saquinhos, tem plástico mais duro como garrafinhas, plásticos mais especiais como cabos ou braços de cadeira, tem plásticos muito especiais como lente de contato. É uma diversidade imensa! (2) Com isso já dá pra imaginar que a reciclagem é bem mais complicada, né? Precisa separar por tipo de material pra reciclar e vários grupos são virtualmente não recicláveis (porque, apesar de terem potencial de serem reciclados, não existe reciclagem pra eles logo eles não são nunca reciclados como embalagens metalizadas de salgadinho, plástico-filme).

Aqui que começam os problemas que ninguém nos conta. A reciclagem do plástico é muito limitada por isso, mas também porque ela é o que a gente chama de downcycling, que é uma reciclagem onde o material perde valor. Então uma garrafa PET não vira uma outra garrafa PET. O plástico também tem, justamente por isso, uma capacidade limitada de quantidade de vezes que o material consegue ser reciclado. Ou seja: a reciclagem do plástico não é tão eficaz assim e não impede que ele chegue no aterro sanitário, só adia esse processo.

Isso é importante pra gente pensar em como a gente usa esse material e quanta esperança a gente coloca nesse processo não-tão-eficaz-assim.

E o resto dos materiais?

Boa pergunta, né? Porque se a gente olhar ao nosso redor vai encontrar inox, eletrônicos, madeira, concreto, remédios, pilhas e baterias, lâmpadas, materiais que a gente não sabe nem dizer o que exatamente são, objetos que misturam vários tipos de materiais juntos, coisas bem pequenininhas, coisas mais complexas, tinta, cosméticos, uma porção de coisas que não parece se encaixar no “plástico, papel, metal, vidro” da reciclagem.

E é isso mesmo: tudo que não é um desses materiais simples tem uma reciclagem MUITO difícil porque depende de processos muito específicos e, no geral, vai pro lixo e é desperdiçado (a não ser que a gente separe e leve em um PEV como eu falei outro dia sobre remédios).

Então a reciclagem não vale a pena?

Não foi isso que eu disse, viu? É só que, no modelo atual, a reciclagem não é tão eficaz quanto as empresas (no geral) pintam pra gente. Dizer, como se fosse uma grande vantagem, que seu produto ou embalagem é reciclável, não diz nadinha. Ou até mesmo dizer que investe em compensação de reciclagem: faz sentido se a embalagem da marca não recicla? Faz sentido se, sendo de plástico, provavelmente ela vai virar lixo sem antes ser reciclada? Faz sentido se, na prática, o % de lixo reciclado do país não aumenta?

A reciclagem é um processo muito interessante e importante, mas pra mim a gente deveria depositar nela os seguintes objetivos e expectativas: 1) diminuir a emissão de gases poluentes, poluição de ar, uso de água e matéria-prima virgem pra produção de coisas; 2) retirar do meio ambiente produtos e embalagens que podem ser prejudiciais como é o caso do plástico; 3) criar processos circulares de reaproveitamento, como no caso do vidro e do alumínio que podem ser reutilizados infinitamente.

Minha leitura é que a gente usa a reciclagem como única alternativa – e salvação – pra quantidade de lixo gerado no mundo. Mas ela é só uma das coisas que precisamos fazer pra melhorar esse problema. Ela tem sido e vai continuar sendo um ótimo paliativo pro problema, mas ele só vai deixar de existir quando, além de uma reciclagem mais eficiente, a gente fizer outras coisas ao mesmo tempo e talvez com mais intensidade.

O que precisaria pra que a reciclagem fosse mais eficiente

Pra começo de conversa, os produtos precisariam ser desenhados pensando no reaproveitamento completo. Se você quer uma referência muito legal sobre isso, recomendo o livro Cradle to Cradle – Criar e reciclar ilimitadamente. Se a gente pensar em produtos que sejam modulares, por exemplo, computadores que não sejam soldados, produtos cujas partes se soltem facilmente pra separação ser simples – e bem diferente de uma cápsula de café, por exemplo, né? – a gente conseguiria otimizar o trabalho de quem faz a triagem dos materiais e a separação por tipo.

Eu acredito que o melhor modelo pra otimizar a capacidade e a quantidade de material reciclado seja os produtores de resíduos separarem alguns tipos de materiais já na fonte, ou seja, em casa ou na empresa. Dois exemplos de PEVs (Pontos de Entrega Voluntário) que tem aqui perto de casa são de vidro e de isopor, dois materiais que são reciclados mas que muitas vezes não chegam na recicladora porque na cadeia, no meio do caminho, valem muito pouco pros catadores de lixo.

Aqui no Brasil, no modelo que temos de, independente da cidade contar ou não com um sistema de coleta seletiva (só 18% das cidades têm!), os catadores e as associações de catadores desempenham papel mais que fundamental nesse processo. São esses lugares e essas pessoas que triam e separam os resíduos por tipo de material, prensam e embalam e comercializam com as recicladoras. Sem eles, nada funcionaria.

Sabendo disso, pra que a nossa capacidade de reciclar aumentasse, precisaríamos adicionar esses atores de verdade na cadeia. Como? As prefeituras deveriam destinar um valor pros catadores terem uma renda fixa referente à quantidade de resíduo que chega na associação. Assim não só o trabalho seria mais justo, mais bem pago e seguro como haveria dinheiro para melhorar a própria estrutura dos galpões com, por exemplo, esteiras mecanizadas e máquinas que separam automaticamente certos materiais. Isso aumentaria a capacidade de triagem, logo, de reciclagem.

Foto por Lacey Williams via Unsplash

Deveríamos focar a produção de coisas em materiais que possam ser reaproveitados (ou seja, diminuir MUITO o uso do plástico por ora) e investir muita pesquisa e desenvolvimento em técnicas de reciclagem mais eficazes e eficientes pros diversos materiais que já usamos.

Todas as cidades deveriam ter coleta seletiva, seja no modelo que for. Só 18% das cidades do Brasil é MUITO POUCO. E tem mais muitas coisas que precisariam acontecer pra nossa capacidade de reciclar aumentar, mas isso deveria ser um objetivo, coisa que nem é ainda.

Antes de ir embora

Eu queria concluir esse post gigante retomando o que muita gente do movimento lixo zero fala (tipo eu e a Bea Johnson): a gente não deveria querer reciclar mais e sim menos. Qual o ponto aqui? Justamente que a reciclagem é um processo cheio de falhas e problemas, não é tão eficaz quanto a gente acredita e não resolve o problema, só deixa ele um pouquinho menor.

É aquela frase bem boa que a Ana usou na abertura do TED dela: “Se você chega em casa e seu banheiro tá inundado, o que você vai fazer primeiro? Fechar a torneira ou jogar toalhas no chão pra absorver a umidade?”. A gente precisaria fechar a torneira da produção, claro, e tem muitas coisas pra discutir nesse ponto (não cabe nesse post), mas já deixo meu aviso e recomendação nos últimos livros do Clube do Livro: Economia Donut (de dezembro!) e Como Ser Anticapitalista no Século XXI (de março, o encontro é dia 06/03!).

Nada do que eu disse significa pra você parar de fazer seus esforços tanto em separar o lixo como em aprender a descartar corretamente tudo o que você produz e lida. Esse texto é muito pra trazer uns pontos bem importantes que falamos na nossa reunião do encontro do Clube do Livro pra que você também pense nesse emaranhado de coisas. Parafraseando o Tom Zé, eu tô te explicando pra te confundir; eu tô te confundindo pra te esclarecer.

Agora deixa seu comentário, por favor, vamos conversar! 🙂

Author: Cristal Muniz

Cristal Muniz decidiu em 2015 que iria parar de produzir lixo e por isso criou o blog Um Ano Sem Lixo. Ao longo desses anos já deu várias palestras em escolas, universidades e eventos contando quais são os principais desafios e o que mudou na sua vida para alcançar o objetivo do lixo zero. Um ano virou uma vida e em julho de 2018 publicou o livro Uma vida sem lixo (Editora Alaúde), o primeiro livro sobre como ter uma vida lixo zero do Brasil.

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  • enquanto eu assistia esse episódio eu pensava muito na questão de que muitas vezes a gente espera uma solução incrível para resolver os problemas da reciclagem, mas nem sempre quer mudar nossos hábitos de consumo. como você disse, tudo precisa trabalhar em conjunto: quem desenvolve os produtos, nós consumidores, o descarte adequado. precisa ser reavaliado cada parte do processo, não dá para depositar o problema nas mãos de apenas um.
    estava na expectativa de que você abordasse o assunto e foi muito relevante poder ver mais questões que eu não havia pensado. muito enriquecedor!

    abraços,
    Any.

  • primeiro parabéns pelo assunto abordado.
    eu penso que isso pode ser melhorado, mas são anos para isso, a cultura que temos hoje tem que ser mudada, e para muitos isso é dar murro em ponta de faca.
    eu e meu marido temos uma marca de tricô e crochê e por menor que seja a gente tenta fazer o mínimo para conseguir escolher bons materiais, mas as pessoas não querem de jeito nenhum pagar mais “caro” por um produto que é artesanal e feito de material mais ecológico, mais natural, elas querem PAGAR BARATO. saímos do RS para morar no AM e mantivemos alguns hábitos que tínhamos, como a composteira, separar o lixo, mas não vemos as pessoas ajudarem, não tem quem fiscalize isso, é difícil.

    • Oi, Jéssica! É, aí a gente vê uma rede de problemas que se misturam né? Fica desleal vocês competirem por preço com marcas que produzem milhares de peças muitas vezes com produtores sendo explorados. A conta nunca vai fechar.
      Mas a gente tem que fazer frente em todos os lados: no individual, no coletivo, no organizado, no orgânico, porque a gente tá numa batalha bemmm difícil.

  • Parabéns pelo texto.
    Uma ajuda muito importante que podemos dar, é levar menos lixo para casa. Ficarmos atentos as embalagens na hora de fazer as compras.
    Uma bela semana para vc com esta chuvinha gostosa, para molhar nossas plantinhas,

    Beijo

    • Oi, Léia! Com certeza, por isso produzir menos lixo é tão importante – pras nossas casas e pro planeta. Nossa, aqui tá uma chuvona essa semana, vai molhar mais que as plantinhas haha

  • Sempre aprendo com você, muito! Essa informação é do tipo que a gente que te segue já sabia, mas meio que com o tempo a gente (eu) vai esquecendo e depositando toda a solução para a reciclagem. É muito bom quando você vem aqui e dá um tapa na cara pra gente acordar e voltar pro rumo, o que realmente importa pra tentar resolver o problema.

    • Ah, Monica, fico feliz que você gostou do texto e espero que tenha sido mais um balão dágua que um tapa na cara kkk

  • Muito bom, Cristal, obrigada pelo texto!
    Eu tenho ainda muitas dúvidas sobre descarte e reciclagem… onde eu moro tem coleta seletiva (o caminhão da prefeitura passa uma vez por semana) mas não tenho certeza de como é o processo dessa coleta específica e o que eles conseguem e não conseguem reciclar. Acabo mandando pra lá quase tudo que eu quero descartar e não é orgânico ou tóxico.
    Uma dúvida: o alumínio é o material mais reciclado no Brasil, não é? Você sabe se é reciclável o alumínio das folhas de alumínio (que se usa para conservar alimentos por exemplo) e aquele de forra fogão?
    Obrigada!

    • Oi, Carolina! Olha, é bem difícil dizer porque cada cidade é um caso, mas no geral a gente não tem como saber mesmo porque a indústria esconde essa informação como eu citei no texto. Aqueles símbolos de setinhas não significam que os materiais SAO reciclados, só que ELES PODEM. Fica bem fácil pra eles isso, né? :S

      O alumínio acho que sim, desde que esteja limpo. Pra esse tipo de coisa eu gosto de colocar dentro de outras, tipo pôr dentro de uma latinha o papel amassado, sabe? Aí não se perde.

  • Olá!

    Parabéns pelo trabalho, realmente é excelente e transforma vidas. Gostaria de perguntar como você encontra os PEVs perto da sua casa. Você usa alguma técnica de busca que poderia compartilhar?

    Desde já, muito obrigada!

    • Então, Marina, eu tenho muita sorte porque aqui em Floripa a Comcap é uma empresa INCRIVEL e super bem organizada que é quem faz a coleta do lixo e tem ações de melhorar a reciclagem e tudo mais. Eles tem no site as informações, pode ser que na tua cidade tenha também. Mas eu liguei um radar pra isso depois que comecei a me preocupar mais e reparo nesses PEVs mais que as pessoas no geral, acho kkk. Mas pra pesquisar vc pode digitar sua cidade no google + descarte de isopor por exemplo. Eu tbm faço o caminho inverso às vezes: pesquiso empresas e marcas que tem programas de logística reversa e vejo se tem na minha cidade. O site ecycle também tem um bando de dados muito bom sobre isso!

  • Muito bem colocado. Só acrescentaria o fato de que tais mudanças são pouco viáveis no modelo econômico em que vivemos, o capitalista, pois se prioriza o lucro a todo custo, inclusive ao custo de nossas vidas. A indústria do petróleo faz de tudo para sabotar a eliminação do uso do plástico e outros derivados nas cadeias produtivas. De todo modo, excelente artigo