Beleza natural e feminismo

Eu cresci em uma cidade de 5mil habitantes. Como vocês podem imaginar, meu colégio era minúsculo. Tive 12 colegas na classe até a 8ª série. O que significa que tinha poucos amiguinhos e, entre eles, poucas amigas. Eu não lembro de me dar muito mal com ninguém, mas tinha minhas amigas preferidas que importam agora. Vou chamar de Luisa e Júlia.

A Luisa sempre foi bem magricela, esguia, cabelo bem liso e quase preto. Sempre foi bonita, sempre era a que tinha mais meninos apaixonados por ela. A Júlia foi um pouco mais gordinha, mas assim, nada demais mesmo. Depois emagreceu, mas o biotipo dela não era magricelo de jeito nenhum. Ela tinha a pele branquíssima, cabelos pretos e olhos azuis. Linda e também disputava o amor dos meninos. Eu era magra, mas não magricela. Até porque sempre curti comer muito. Não era o foco dos meninos assim, na minha percepção, mas vivia enrolada em causos (#canceriana). Depois dos 12 anos eu continuei crescendo e virei a mais alta da trupe, com quase 1,80m. Tinha o cabelo ondulado, era loira. Bonitinha, vai.

Nessa época, durante a infância, eu achava elas o máximo. Queria ser magra que nem a Luisa e ter os olhos azuis da Júlia. Me sentia gorda, porque elas viviam falando nisso. Mas comia, não lembro de pirar muito com dieta, sempre tive muita fome. A Luisa pirava um pouco e comia pouquíssimo. Inclusive lembro que a mãe dela vivia inventando dietas diferentes pra fazer. Lembro de uma em que todas as refeições precisavam ser sopa e outra que só podia comer melancia. A Júlia teve seus problemas com o peso e embarcou numa dieta com uma nutricionista. Se exibia comendo só frutas enquanto a gente atacava os cachorros-quente do colégio.

Quando chegou a pré-adolescência, comecei a me sentir feia. Desencaixada. Eu não era o que via de bom na Júlia nem na Luisa. E não reconhecia muito o que eu tinha de bom. Bom, vocês sabem como termina essa fase: odiava cada centímetro do meu corpo. Eu cortava o cabelo repicado igual ao delas, que era liso, e o meu ficava uma bagunça ondulada que eu queria morrer. Eu achava meu nariz simplesmente imenso e sonhava com uma cirurgia até porque minha mãe não cansava de repetir isso lá em casa. Eu achava que meu pé 39 era um absurdo, mesmo que eu tivesse minha altura e ah, andava corcunda porque queria ser mais baixinha.

Eu, na praia, sem maquiagem, sem escova no cabelo e me sentindo incrivelmente linda! 🙂

Eu cresci numa cidade onde fui muito feliz em muitos aspectos: morei com meus avós, comia comida da horta de casa, não tinha medo, era tudo pertinho, a biblioteca era incrível, tive vários bichinhos e era super tranquilo. Ao mesmo tempo que foi muito difícil porque sempre me senti inadequada pros costumes, pra certos pensamentos, a famosa ovelha negra da família.

E, como vocês também devem saber, cheguei na fase adulta assim: insegura, achando e tendo certeza de que era chata porque ninguém curtia as mesmas músicas que eu, os mesmos livros que eu, que não ia nunca ser considerada bonita porque não me adequava ao tipo loira de cabelo comprido e super liso que faz chapinha (apesar que tive uma fase assim, rs).

Aí eu encontrei minha bolha na faculdade e vi que tudo bem, posso ser diferente do que me diziam que era o normal e sou aceita. As pessoas leem livros que eu leio, gostam das coisas que também gosto. Momento identificação total. Mas eu ainda me sinto feia. Meu cabelo sempre bagunçado, minhas roupas que não são o que eu queria estar vestindo, não sei usar maquiagem.

Foi só com a chegada dos primeiros textos sobre feminismo que eu comecei a me sentir bonita. Tinha texto que dizia que você pode escolher o cabelo que quiser ter. Tinha texto que falava de meninas gordas, negras, lésbicas, com deficiências físicas, com várias coisas que eu não tinha e ainda sim eram lindas. Então eu também devia ser, oras.

Eu percebi que o sentimento de me sentir GORDA era absurdo quando, com uns 20 e alguns, achei uma foto de uns 16. Na frente do espelho, com um top de ginástica. Super magra. E lembro que me achava GORDA na época. Não com uma barriguinha (que nem tinha), gorda. Aprendi com o feminismo que reproduzir essa discurso é opressivo pra quem é gordo, até porque não tem nada de ruim ser gordo. E que nunca fui gorda, mesmo que as minhas amigas da infância falassem isso o tempo inteiro.

Mas uma das coisas que mais me marcou foi quando uma amiga da faculdade, que eu achava linda demais, falou que tinha feito alisamento no cabelo e ele não era natural. Depois, ainda falou que tinha feito plástica no nariz. Achei muito louco. Comecei a perceber que uma das minhas buscas era não só pela beleza, mas por uma beleza que eu não tinha e então me frustrava em cada olhada no espelho. E ao mesmo tempo, comecei a ver que tudo bem se eu quisesse mudar certas coisas. Tudo bem, mesmo.

E daí, com um tempo, eu descobri que eu era o “beleza padrão”. Tinha gente que falava que tinha inveja porque eu era magra e alta. Eu pensava “oi? Inveja de não pode usar salto? Inveja de… eu sou feia!”.

Meu namorado Lucas teve uma grande participação em o “eu sou feia” virar “eu sou bonita”. Depois de inúmeros relacionamentos abusivos que minam sua auto-estima, eu conheci um cara que me acha linda. Do pé ao cabelo. E comecei a perceber essa beleza em mim de tanto que ele fala(va).

Hidratante que fiz 🙂

E foi aí que eu conheci o mundo da beleza natural também. Um mundo que, pra começo de conversa, diz que a indústria mentiu pra você a vida inteira. Porque é isso que a indústria da beleza faz: mente. Eles mentem que o único cabelo aceitável é o liso. Eles mentem que não existem pessoas negras porque não tem base e outras maquiagens pra essas peles. Eles mentem que existem milagres e que se você passa um produto, sua pele milagrosamente vira de pêssego. Eles mentem que você SÓ tem como ter resultados bons com produtos que ardem. Eles mentem que o corpo ideal é um corpo doente de gente que não come nada o dia inteiro e provavelmente tem distúrbios alimentares. A lista, amigos, é infinita.

Saber que tudo o que você ouvir é mentira é… libertador. Primeiro porque você sente que não era você que tava errada esse tempo todo, mas que eles que queriam te enfiar em uma caixinha que você jamais caberia. Sério, as discussões e textos sobre feminismo me ajudaram TANTO a perceber isso. E não vou nem dizer que daí do nada passei a ME AMAR, mas era incrível porque parecia que eu não devia mais nada a ninguém.
Depois que, o movimento da beleza natural, pra mim, é o seguinte: você entender o seu corpo. Sua pele, sua genética, seu biotipo, seu cabelo, suas cores, suas formas, o que você é. E, a partir disso, usar produtos pra equilibrar isso, deixar mais bonito, ajudar o jeito que você é a ser mais ainda. Na beleza natural não tem máscara de argila pra transformar sua pele em algo transcendental ou pra tirar rugas ou pra rejuvenescer. Essas coisas não são naturais, os cosméticos naturais são pra entender e caminhar nesse caminho que é só seu.

E, por ser só seu, você pode criar seus cosméticos em casa. Você pode pesquisar o melhor óleo vegetal e ter uma pele linda e hidratada. Você pode testar as cores das argilas. Você pode ficar sem maquiagem sem medo. Você pode aceitar seu cabelo na forma que ele ficar com seu xampu sólido natural.

O meu movimento de beleza natural, o que eu reconheço como sou praticante, é feminista. Porque não impõe nenhuma meta ridícula pra ninguém, mas diz pras mulheres que tá tudo ótimo com o que elas tem na mão, no rosto, no corpo (pros homens também, mas tô falando das mulheres).

Tem sido uma super libertação usar cosméticos naturais, feitos em casa e não precisar pesquisar em blogs sobre produtos e maquiagens. Me sinto muito mais feliz desde que comecei o caminho do auto-descobrimento. Eu gosto de como eu sou, eu uso produtos que entendem como eu sou sem brigar comigo. Parei de tentar lidar com meu cabelo como se ele fosse o cabelo grosso e liso da Luisa ou da Júlia.

Se você ainda tá muito presa em “não consigo usar maquiagem natural porque não cobre toda minha pele” ou “não consigo me sentir bonita com meu cabelo natural”, tudo bem também. Acho que o importante, antes de mais nada, é você se sentir bem. Reforça sua auto-estima e, quem sabe, daqui a pouco você tá usando seus cachos e sendo feliz assim. É bom entender porque a gente não sente isso com o cabelo que veio com a gente. É o que eu espero: que, se você não quiser seguir os padrões bizarros que venderam pra gente como verdadeiros pra beleza, tudo bem. Mas se você quiser ter o cabelo diferente, tudo bem também desde que seja uma vontade sua e não uma obrigação moral. E que tem um monte de produtos, óleos, argilas, chás que vão te deixar com uma pele linda e saudável e aí você vai poder usar a maquiagem de si mesma, assumindo tudo o que você já é, gata. Porque você é linda. Eu sou linda. Somos todas lindas. Do jeito que escolhemos ser. 🙂

Ps.: A Luisa e a Júlia sempre foram lindas. Mas a Júlia, especificamente, sempre quis ser o que não era. Pegava sol do meio dia na esperança de ficar bronzeada. Inclusive ficou laranja com um auto-bronzeador numa dessas tentativas. Fazia luzes pra tentar ser mais loira mesmo tendo um cabelo preto lindo que combinava com ela só porque a moda era ter luzes. Sofreu horrores a vida inteira e, se bobear, sofre até hoje achando que é gorda. Não sejamos Luisas e Júlias mais, que passam a vida insatisfeitas consigo mesmas. 😉

Author: Cristal Muniz

Cristal Muniz decidiu em 2015 que iria parar de produzir lixo e por isso criou o blog Um Ano Sem Lixo. Ao longo desses anos já deu várias palestras em escolas, universidades e eventos contando quais são os principais desafios e o que mudou na sua vida para alcançar o objetivo do lixo zero. Um ano virou uma vida e em julho de 2018 publicou o livro Uma vida sem lixo (Editora Alaúde), o primeiro livro sobre como ter uma vida lixo zero do Brasil.

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  • Impressionada! Me identifiquei muito, também sou magra, de cidade pequena, com quase 1,80 e passei por situações idênticas às que você relatou. Ainda estou no caminho rumo a essa liberdade. Mas virei fã de carteirinha quando conheci seu trabalho. Sucesso e obrigada!

  • Incrível Cristal! Eu passei por isso minha adolescência inteira também, porém ao contrário. Era meio baixinha e gordinha quando entrei na adolescência e o cabelo bem crespo e indefinido. Não me amava e sempre tentei me sabotar pra ficar padronizada. E junto com o feminismo comecei a me amar e hoje estou satisfeita do jeito que sou. As opiniões externas nunca foram tão irrelevantes pra mim!

    Viva o amor próprio! Ótimo texto, parabéns!

  • O feminismo liberta mesmo, mas eu tenho muito dificuldade, até com tudo que já aprendi e me libertei de realmente me amar do jeito que eu sou, é uma vida inteira de ensinamentos que nos condicionam a sermos todas iguais e é bem difícil se livrar verdadeiramente de tudo isso.

  • Adorei seu post. Aprender a se amar e se libertar dos padrões impostos é difícil, porém gratificante. Sou muito feliz por ter conseguido finalmente me amar. Me traz alegria olhar no espelho de manhã e pensar: "Nossa, você está uma graça hoje ein!"

  • Que lindo, adorei ler isso. O feminismo também me libertou, começei a entender muitas coisas sobre a vida, sobre o que somos dotrinadas a ser e o que de fato somos. Então resolvi fazer o que eu queria fazer haha, parei de pintar os cabelos e estou deixando ele crescer na sua cor natural (que eu detestava), aceitei meu corpo exatamente como ele é, parei de comer carne e estou buscando por uma alimentação mais saudável, não só alimentação, mas uma vida mais saudável. Decidi não mais usar produtos industrializados, respeitar meu corpo, a natureza,os animais. Seu blog me ajudou muito com minhas pesquisas, mas eu nunca comentei aqui antes. Enfim, estou muito feliz com minhas escolhas e grata a você e seu trabalho. Muita boa sorte para nós em nossos caminhos.

  • Ótimo texto! É uma pena que o feminismo hoje esteja tão minado. Homens e mulheres que não têm muita noção do que é feminismo ou do tratamento histórico pelo qual passou a figura feminina afirmam ser apenas mais um radicalismo entre tantos.

    Parabéns e continue linda!
    😉

  • eu tenho 15 anos mas já posso dizer que o feminismo me libertou! ate os meus 13 eu tinha muitos problemas em relação ao meu corpo e aparência (nao queria me olhar no espelho e etc) mas depois de começar a ter uma relação mais próxima com o feminismo percebi que tudo que a sociedade nos diz sobre a nossa aparência é besteira! Tudo padrões e mentira pois nós não precisamos ter o "corpo perfeito", a pele lisinha, o cabelo maravilhoso e etc, que todas nós somos ma-ra-vi-lho-sas assim do jeitinho que somos, com gordurinhas, cabelo bagunçado, pele oleosa e tudo mais! E hoje eu me sinto linda todo dia por ser exatamente quem eu sou e isso é incrível <3 que todas nossas irmãs possam perceber isso e passarem a se sentirem maravilhosas sempre, porque elas são!

  • Post incrível! Acredito que a sociedade nos influencia muito mais que imaginamos. Mas a minha vida mudou muito quando decidi no ano passado retirar toda a química do meu cabelo e voltar com ele totalmente natural (cacheado). O que antes achava horrível (acredito que por imposição dos outros), hoje acho lindo e isso é o belo de se aceitar e se conhecer. São essas as reflexões que devemos fazer para nos libertarmos disso tudo que nos prende de sermos nós mesmas.
    Adorei o post e blog, primeira vez que venho aqui e já te digo que virei fã 🙂

  • Oi, adorei o texto e passei por algo assim. Na escola a minha melhor amiga era loira, com corpão e engraçada. Eu era magra (demais, sacas?), cabelo preto e oleoso (não podia lavar todos os dias, pq também vivia doente) e claro, cheia de espinhas.
    Eu adorava ela, a menina nunca falou que eu era muito magra ou bla bla bla. Ela só falava que eu tinha que me valorizar quando eu levava um fora.
    Mas mesmo assim eu me sentia muito mal em andar com ela. Depois de um tempo comecei a andar com meninas "mais feias que eu". bizarro o que a gente faz pra ser aceita, né?

    Hoje, também graças ao feminismo, eu me libertei de várias amarras. Mas o que eu carrego comigo é me libertar para ser o que eu quero ser, e não o que as pessoas esperam da minha aparência.

    Eu não vou aceitar meu cabelo natural, eu vou pintar ele pq EU me sinto mais bonita (mesmo algumas pessoas falando que a cor natural dele é linda). Eu vou alisar o meu cabelo porq EU considero melhor de cuidar, e assim vou indo. Vou tomando decisões de acordo com o que eu gosto, eu me sinto bem.

    Beijos
    Paloma

  • Também fiquei interessada nos livros, pois passo por problema semelhante e não estou satisfeita por não ter o corpo padrão. Não consigo aceitar que posso ser bonita acima do peso.

  • Oiii. Me identifiquei demais com seu texto, mas eu sempre me aceitei. Tenho 1,55m e não uso salto alto, na verdade, tenho 1 e uso só quando quero. Já fui madrinha de casamento e entrei de sapatinha simplesmente pq eu gosto de me sentir confortável. Eu poderia ter usado salto, mas não sou obrigada hahaha.
    Sou cacheada e alisei meu cabelo por anos pq eu quis e agora estou em transição capilar porque eu quero meus cachos novamente.
    Tenho estrias e flacidez na barriga, mas são minhas "marcas de guerra" da gestação. Tem coisa mais linda do que poder gerar uma vida? Não tem! Então sou feliz assim. ME sinto bem feliz sem seguir certos padrões
    Também não sigo o padrão de família tradicional. Moramos com minha mãe e o pai da minha filha mora com a mãe dele. Somos uma família com menos problemas e muito mais amor do que vejo em famílias de propaganda de margarina.

  • Adorei,
    é isso ai
    estou num questionamento com os meus fios brancos ,,,, deixo nao deixo….
    obrigada